A vida exige sacrifícios - Brumadinho



     
Frequentemente ouço pessoas dizerem estas palavras - a vida exige sacrifícios - com um ar fatigado, olhos esmaecidos, postura curvada, como se estivessem carregando a vida, não apenas a sua, mas de toda a humanidade, nas costas há muito tempo. Penso que, tempo demais.
Sim, a vida exige sacrifícios. Não só dos seres humanos. Eventualmente sacrifícios são exigidos de todo o ser vivente.
Nos animais que vivem em grupo, quando atacados por um predador, em geral os mais velhos e/ou doentes sacrificam-se para que os demais possam prosseguir. Tempo virá em que aquele que foi ajudado terá sua chance de retribuir da mesma forma. O importante é que a vida continue.
Voltando a nós humanos, os sacrifícios são proporcionais às nossas ambições.
Se um homem se contenta com uma vida simples, e decide não se casar e/ou não ter filhos, os sacrifícios que terá de realizar serão evidentemente muito diferentes daquele que deseja uma família. Sim, diferentes. Não melhores nem piores. Apenas diferentes.
Aquele que almeja viver na riqueza, a menos que tenha nascido em família rica, para alcançar esse sucesso fará, certamente, muito mais sacrifícios do que um homem que seja feliz com o pão nosso de cada dia.
O que estou dizendo é que, diferente dos exemplos naturais, os sacrifícios a que nos propomos são proporcionais ao ganho almejado.
Assim, o correto seria dizer que nós exigimos sacrifícios de nosso estado de natureza, abrindo mão de tempo – a moeda universal – de vida e liberdade em troca do futuro que projetamos.
Qual dos casos é o correto? Como vou saber? São escolhas individuais e o que importa a nós as escolhas que os outros fazem para si?
Casos muito diferentes, e desses nunca vi ninguém se queixar, são aqueles em que, para o nosso benefício, o sacrifício é realizado por terceiros. Nessas situações ninguém reclama, não é?
Por exemplo. Sabemos que muitos dos confortos que temos dentro de nossas casas hoje são os frutos de pesquisas para a produção de armas. Sim, armas. Aquelas que matam milhares, milhões nas guerras em todo o planeta. E tenho comigo que só não matam fora do planeta por que ainda não estabelecemos nenhuma colônia fora desta batata[1] envolta em água onde a vida como a conhecemos se desenvolveu.
Um dia perguntei a um amigo americano por que alguns segmentos da sua sociedade se recusavam a usar alguns utensílios domésticos modernos e ele me respondeu que certas pessoas simplesmente não se sentiam bem ao pensar que para ter o privilégio de apertar um botão e ver sua pipoca estourando no forno de micro-ondas inocentes foram mortos em guerras fundamentadas em argumentos que convencem somente àqueles que não sabem ler. Cá entre nós, a maioria esmagadora da humanidade.
Mas então somos tão insensíveis assim? Sim. E não? Ocorre que nossa visão tem alcance limitando e, portanto, nossa sensibilidade também.
Fui convidado para jantar na casa de uma amiga há algum tempo. Sua mãe faz maravilhas na cozinha então, aceitei na hora.
Estávamos na sala eu, minha amiga, sua mãe e uma vizinha quando a TV exibiu cenas de um tsunami que pegou de surpresa a Indonésia.
As cenas eram terríveis, mas antes mesmo de o apresentador passar para outra notícia, após umas breves interjeições de tristeza a vizinha se voltou para a amiga e exclamou:
- Tu soube do seu Antônio? Coitado... Morreu hoje de manhã. Tinha câncer, mas não dava pra dizer...
- Pois é... Quantos anos ele tinha mesmo?
- Noventa e dois eu acho...
E aquele assunto se prolongou por muito mais tempo do que o noticiário completo sobre a Indonésia. Ou seja, era muito mais digno de atenção a morte de um senhor de idade muito avançada do que uma tragédia que havia deixado mais de trezentos e oitenta e quatro mortos até aquele momento.
A maioria dos meus vizinhos sequer soube do massacre ocorrido em Columbine[2]. Isso por que naqueles dias algo muito mais importante estava sendo debatido. A novela das oito.
Quando houve a tragédia – para mim, crime – em Mariana houve grande comoção. As pessoas fizeram orações, doações... E o que se resolveu até hoje? Ah, a vida exige sacrifícios! Mas, hein? Sacrifício de quem? O que a empresa responsável fez de concreto com relação às vítimas? Ah, contestações judiciais. Ok, a lei permite, não é?
Agora, no tempo em que escrevo a mesma empresa responsável, a Vale, dizem carinhosamente os noticiários, está compungida com o ocorrido em Brumadinho. Seu presidente disse que fizeram de tudo, com a melhor tecnologia para que nunca mais se repetisse Mariana, mas se repetiu.
Bom saber que o diretor presidente está compungido. Pena que isso não ressuscita os mortos, não é?
Mas a minha pergunta é: O que será feito da Vale? Seus produtos continuarão sendo aceitos? Suas ações continuarão sendo recebidas? Compradas por especuladores, esperando que em alguns meses todos esqueçam e os títulos voltem a valorizar?
A vida exige sacrifícios. Essa expressão não sai da minha cabeça!
Sacrifiquemos, pois, então, nossa gente, mais uma vez. Afinal, em breve outra tragédia rebenta neste país onde quem pode, sacrifica, e quem não manda, sacrifica-se!
Elogios sem medida aos bombeiros. Meus heróis de verdade, desde a infância.
Quanto ao restante, bem, a vida exige sacrifícios. E em se tratando dos sacrifícios dos outros, especialmente os que estão distantes de nós, ora, faremos orações, doações e comentários enquanto o noticiário exibe a dor alheia. O que mais podemos fazer, não é?
Cezar Lopes.'.



[1] https://www.youtube.com/watch?v=LZ3mhMiXtTY
[2] https://www.youtube.com/watch?v=I4cVMcy8Hok

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