Só porque é natal



Ricardo é empresário. Nascido em berço pobre, lutou muito para construir seu patrimônio e acredita que dar esmola em nada contribui para o crescimento do cidadão.

Não obstante, ao voltar para casa todos os dias deparava-se com um menino franzino, pele parda, olhos verdes e cabelos loiro, liso e pastoso que vinha sorridente até a janela do seu veículo:

- Tio, tem uma moedinha?

Passaram-se os meses e mesmo depois de muitas negativas o menino persistia. Com seu sorriso de criança sempre que Ricardo negava-lhe o pedido agradecia e saía saltitante correndo em direção a outro veículo. Pelo retrovisor, Ricardo observava pensativo: devo admitir que esse guri não desiste facilmente... Ah, e tem o jeito de correr do Garrincha também. Então o sinal abria e Ricardo seguia viagem deixando para trás o “menino da sinaleira” como o havia apelidado na conversa com os amigos.

Vinte e três de dezembro, a cidade, enfeitada, prepara-se para receber ao Papai Noel. As luzes coloridas espalhadas pelo centro da cidade dão um tom ainda mais artificial à noite que se aproxima. O céu plúmbeo de fim de tarde desmente a meteorologia mais uma vez e é bem possível que chova, aliviando o calor daquela semana. Ricardo está ocupado com a festa de sua empresa no próximo sábado quando é surpreendido pela figura do menino ao lado da janela do seu automóvel. Sempre com o mesmo sorriso infantil, sempre com os olhinhos brilhando.

- Tio, tem uma moedinha?

- Ricardo, voltando de seus pensamentos pergunta, na verdade, para si mesmo:

- Como é o teu nome guri?

- O meu nome é Marcelo, e aquela ali - aponta para uma amoreira ao lado da via - embaixo da árvore é a minha mãe. Hoje ela veio junto por que ontem uns homens disseram que iam me bater.

- E o teu pai?

- Não sei, responde Marcelo com ar pensativo, não conheci.

Ricardo olha para a senhora sob a árvore, parece muito cansada. Nesse instante o sinal abre e ele vai embora pensando em quem iria querer bater naquele guri.

Vinte e quatro de dezembro, na sinaleira, lá vem o Marcelo. Ricardo repara na figura da mãe. Observa seu rosto e percebe o cuidado com o qual seus olhos acompanham os passos do filho.

- Tio tem uma moedinha?

- Marcelo eu não dou moedas nas sinaleiras. Mas, só porque é Natal, vou te dar um presente. Tome. Feliz Natal.

O sinal verde acende e Marcelo fica para trás olhando a nota de cinqüenta reais recebida, correndo para a mãe que o acolhe. Ricardo observa a cena pelo retrovisor enquanto seu veículo se afasta. Seu coração está feliz.

Vinte e cinco de dezembro, Ricardo volta da festa da empresa, a cabeça leve, o coração acelerado, ansioso para chegar em casa e comemorar com sua família. Na sinaleira, ao invés de Marcelo, apenas sua mãe esperava por ele. Assim que o viu, seus olhos se encheram d’água. Percebendo que havia algo de errado Ricardo estacionou e foi ter com a senhora.

- Posso ajudá-la? Onde está o Marcelo?

A mãe não conseguia articular as palavras. Soluços presos em sua garganta embargavam-lhe a voz. Então, grossas lágrimas começaram a rolar pelos sulcos profundos em seu rosto precocemente envelhecido pela dor. Finalmente, num esforço sem medidas disse num grito de desespero inconsolável: mataram ele.

Ricardo tomou um soco no estômago. Respirou fundo, recompôs-se disse a única coisa que lhe veio à mente: como assim, cadê o Marcelo?

Com o rosto desfigurado pela dor a mãe explicou: o Marcelo foi para casa muito feliz ontem. Com o dinheiro que o senhor deu a gente comprô comida e um carrinho que ele queria muito na venda do seu Luís. Depois, enquanto eu fazia a janta, tinha até refrigerante pra ele, deixei ele brincar na frente de casa. Antes de saí ele me deu um beijo e disse que era o menino mais feliz do mundo por causa de que ele tinha até refrigerante no Natal. A vila é pobre, mas tem pouca gente ruim. E os que não prestavam já tavam preso. Mas, só por que é natal, o juiz resolveu soltá eles pra passá o Natal co’as família... Mas esses traste não tem coração. Se acharo e trocaro tiro até morrê. E mataro o meu Marcelinho cuma bala perdida. Agora, quem vai tomá o refrigerante que a gente compro pro natal? Por Nosso Senhor, quem vai... cuidá do Marcelinho se ele tivé cum frio?

As lágrimas voltaram a rolar grossas em sua face. Ricardo não tinha o que dizer. Uma lagrima escorreu silenciosa em seu rosto enquanto abraçava aquela mãe, lembrando do “menino da sinaleira” com seu sorriso infantil, seus olhinhos brilhando enquanto corria de um veículo a outro com suas perninhas tortas sob o sol escaldante pedindo uma moedinha.

O sinal fechou e abriu muitas vezes enquanto Ricardo, abraçado à mãe de Marcelo, consolava-a em silêncio. Com o brilho das luzes coloridas e dos enfeites de natal refletindo no asfalto, molhado pela garoa que começava a cair, a imagem dos dois, na calçada, tornava-se uma verdadeira pintura a óleo, um presente de natal, para o deleite dos motoristas que, assistindo a cena do empresário abraçado a mendiga, enquanto esperavam o sinal abrir, resmungavam dentro de seus veículos: humpf! Só por que é natal!

 (Escrevi este conto em 30/08/2007 às 17h03min e ontem, infelizmente, ele se concretizou em Novo Hamburgo. Meus sentimentos à família. E uma pergunta em meio a tamanha dor: Indulto de Natal para criminosos? Até quando teremos de suportar essa estupidez?

Cezar Lopes.

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