Epifania

Cogito ergo sum. Mas bem que eu poderia não existir.

Detenho-me a refletir sobre a existência no dia consagrado aos desencarnados.

O mundo segue lânguido e misantrópico lá fora. Os mortos enterram seus mortos e choram a própria finitude que se avizinha.

Dentro de mim, avalio a solidão desta frase. Cogito ergo sum.

Estou rodeado de pessoas que tentam se definir no tempo e no espaço da própria existência. São cargos, títulos, marcas de automóveis, cores odores, amores, paixões, enfim, signos. Sinais que emitem para que possam se localizar reciprocamente, na escuridão que os envolve, certos de que estão cegos de tanta luz. Quanto a mim, me canso facilmente desse jogo. Acabo por desrespeitar as regras e rasgar cenários erigidos por zelosos cenógrafos acéfalos. Mas, com o tempo aprendi a deixar que as crianças se divirtam enquanto podem. Sem lhes tirar o prazer da ilusão, também não sou obrigado a resgatar-lhes quando se dão conta da ficção, embora isso raramente aconteça e as pessoas terminem seus dias de forma serena com as palavras dos familiares atestando que foram bons pais, bons maridos, esposas e mães zelosas e amorosas. E assim cerram-se as cortinas de suas existências pacíficas, gentis e amorfas.

Meus amigos mais queridos são pessoas bem comuns. Daquelas que riem de uma piada no teatro simplesmente por que estão no teatro assistindo uma comédia e é isso que se espera que façam.

Incapazes de sofrer continuamente ofendem-se profundamente quando tento lhes fazer ver que sua dor é apenas mais uma dor. Por que, de fato, não é. Não para eles. Então, por prezar-lhes, aprendi a recitar velhos adágios cuja função, especulo, seja a de tornar mais fácil a compreensão de uma idéia mais profunda e complexa. Ou seja, mais um símbolo.

Os símbolos têm essa força. Por isso são tão importantes, e tão perigosos. Servem, com a mesma presteza a Deus e ao diabo. E nos intervalos da tragicomédia universal servem também ao homem (eis quando se tornam perigosos).

Penso que jamais alcançarei a rua. Trancado aqui, com meus mestres, divirto-me com as idéias fantásticas de tantos pensadores que, no entanto, jamais romperam a barreira das suas intransponíveis janelas. Nem eu tampouco. Rousseau e Voltaire divergem e convergem continuamente no transcorrer da História ao sabor das circunstâncias.

Cansado, optei por uma distração salutar. Extenuado de tanto lutar contra as idéias que apenas se reconstroem tomando novas formas deixei de lado a estética do pensamento por algum tempo. Acabei mais um Cony e agora visito a Palomas de Juremir Machado da Silva (depois de acompanhá-lo a Paris, retornamos a Palomas para mais uma aventura). Ao lado, ainda um livro que volta e meia me cai nas mãos. A vida mística de Jesus. Gosto da idéia do grande Avatar ter encerrado seus dias na tranqüilidade da reclusão voluntária e necessária para a construção de sua obra neste plano. Não me importo com a diferença entre a ficção e a realidade. A verossimilhança é o que torna real o real. É comum que a verdade sem limites tome ares de mentira. Quem tem razão? Não sei, nem me interessa. Mas é certo que se eu fosse o cara, fechava as portas do paraíso pra todos aqueles que me tivessem permanentemente pregado a uma cruz. Cruz, outro símbolo. Muito antigo, representa o homem. O homem inventa o homem e depois representa o homem inventado como a dizer: é óbvio, mas também é um mistério, tão profundo, que somente os símbolos podem expressá-lo. Assim, nada de novo no front. Apenas mais um dia, mais um símbolo repleto de significados e pleno da infinita solidão humana.

Falecido escritor - Cezar Lopes.

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