Que Será de Nossos Fantasmas?

Noutros tempos a sociedade era neurótica, hoje é paranóica. De quem será a culpa?[1] Parece-me que a culpa é dos arquitetos. Sim, dos arquitetos. Pois foram eles que tiraram, das casas, os porões e os sótãos. Sem sótãos e sem porões aonde diabos irão habitar os nossos fantasmas? De família ou adquiridos ao longo do caminho, aonde irão se encontrar para bater aquele papo de fim de noite com seus velhos, e defuntos, amigos? E as nossas crianças? Crescerão sem o sibilar dos ventos naquelas velhas janelas de grandes sótãos onde dormiam as corujas, os morcegos, e os fantasmas que, à noite, faziam das suas, divertindo-se em despertar o medo, latente em todo ser humano desde a idade da razão, com relação à sua transitoriedade neste plano.
Se isso já soa terrível, que dizer, então, daqueles fantasmas (underground) que habitavam os porões das casas antigas? A eles, mais que aos fantasmas dos sótãos, não interessa ficarem expostos ao dia em garagens cheirando a óleo e graxa ou em quartinhos apertados. Suas correntes, que assolavam os subterrâneos mentais das crianças, das donas de casa de boa fé e de algum cagão crescido
[2], agora, transitam pelas salas de estar, pelas cozinhas e até (que humilhação para um falecido!) pelos banheiros das famílias. Tudo isso em nome da estética contemporânea!
Eram sábios os antigos construtores. Reservavam espaço distinto em suas habitações e em suas vidas para dar justa e merecida guarida aos seus fantasmas. Ocupavam-se, e nem digo se ocupavam mais, pois não é que nos ocupemos menos, nós simplesmente não nos ocupamos, com o ser e com o ter, nesta ordem.
Eram felizes e deixavam espaço para que suas assombrações também o fossem. Sabiam o real valor de um amigo e, ainda, tinham tolerância suficiente para aceitar com naturalidade as diferenças entre os planos. Ensinavam isso aos seus filhos que, depois da infância, já não temiam os barulhos das correntes por que, sabiam, se tratava de algum barão ou, mesmo, um azarado ladrão decapitado se acomodando em seus aposentos.
Todavia, depois das grandes guerras
[3], depois, até, do revolucionário Modernismo, algum canalha que se acreditava enviado divino para polir pedras alheias inventou grandes organismos internacionais para regular nossos modos de ser. Pagou velhas instituições rançosas que ostentavam, já àquele tempo, um deus corrompido e falido para exorcizar nossos fantasmas.
Depois, através de mirabolantes planos econômicos e mudanças estruturais na geografia política do planeta esse mesmo decantado ser fundou escolas que vendiam diplomas a uma multidão de perdidos que já nascera sem rumo e fora de prumo.
Após sua formatura eles foram chamados e facilmente convencidos de que saber não importava mais. O Mundo havia mudado. Nem ser, nem ter importavam mais. O importante agora era parecer.
Ora, já que fantasma que é fantasma mesmo, daqueles de linhagem e etiqueta, só aparecem aos mais íntimos, não havia mais lugar para eles nessa sociedade onde, evidentemente, apenas o que aparece pode parecer.
Foi assim que um grupo de arrojados arquitetos, acatando a máxima do imperador romano repetida em diversas línguas nas instituições educacionais de todo o mundo contemporâneo, eliminou, de quase todas as casas, a morada dos fantasmas.
A Natureza, claro, se sacode em busca do equilíbrio. Tanto no nível planetário (ecossistema global), quanto no nível psicológico. Tais sacudidelas refletiram diretamente em nossos corpos, afinal, no fluxo-refluxo do que está em cima e daquilo que está embaixo não há intervenção que não venha a surtir efeito.
Porém, a Natureza não pergunta nem reflete se alguma alteração é positiva ou negativa
[4]. Por isso, depois que os indivíduos passaram a guardar suas neuroses quotidianas na gaveta do que não pode parecer, simplesmente, por que não aparece, na busca natural e inevitável pelo equilíbrio, nosso sistema psicológico encontrou na paranóia uma substituta adequada àquelas neuroses, agora, ocultas.
Pouco importa à Natureza, entretanto, se isso nos causa úlcera, “peste bubônica, câncer, pneumonia; raiva, rubéola, tuberculose, anemia; rancor, cistisercose, caxumba, difteria; encefalite, faringite, gripe, leucemia; hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia”.
[5] A própria natureza da Natureza a faz existir apenas no caos, pois é ali que sua tarefa se cumpre.[6] Mas isso não precisa ter um preço tão elevado já que, também, é da Natureza seguir os caminhos mais curtos na solução dos problemas (observemos os caminhos dos rios; nunca vi a chuva chovendo para cima).
Na Natureza estes caminhos são inconscientes. Por que será, então, que nós, seres conscientes fazendo pleno uso de nossas faculdades mentais desviamos o curso natural em nós mesmos, fazendo-o seguir trilhas mais longas e bem mais difíceis?
Errar não está errado. Errada é esta tentativa infantil do homem contemporâneo em tentar exibir erros, apenas os que inevitavelmente aparecem, fique claro, como se acertos fossem. Quer coisa pior? Pense, então, onde ficam os erros que não aparecem? Sem sótãos e sem porões as pessoas procuram certificar-se a todo o momento de que ninguém perceba a existência inevitável de seus fantasmas.
O que torna mais ridículo o espetáculo é que todos percebem, mas também estão tão ocupados em tentar ocultar os seus próprios espectros que aderem facilmente a esse jogo de faz de conta. Um finge que não tem o outro finge que não vê e vice-versa, assim fica tudo bem.
[7] Só que não fica.
A paranóia, se observarmos com cuidado, é um fenômeno das sociedades contemporâneas. Claro que ela esteve presente de forma latente ao longo de toda a História, porém, tratava-se de um direito natural e privilégio concedido apenas aos tiranos e ditadores.
[8] Hoje, sem sótãos e sem porões, a exceção virou regra e, tal qual um negativo de um filme, a regra virou exceção. Por esta a razão os neuróticos que não aderiram aos novos tempos[9] são tratados como lunáticos. Ignorados como se fossem fantasmas que, de acordo com a ótica do parecer, não existem mais, pois, o que não aparece, não pode parecer e se não parece, não é. Ah, Parmênides iria à loucura conosco.
Mil Sócrates não dariam conta das coisas hoje. Embora não precisemos de mais nenhum além do primeiro e único.
[10] Basta que se deixe de parecer, cultivar e buscar somente aquilo que aparece. É deveras importante, neste caminho, reconhecer a existência de seus fantasmas. Dialogar com eles às vezes para que não se sintam tão sozinhos e nem pensem que nos esquecemos deles. Mentiram para nós quando nos disseram que era preciso exorcizá-los por que eles queriam nos matar. Nossos fantasmas não querem nos matar. Por quê iriam querer isso? A morte é inevitável, faz parte da vida.[11] Pelo contrário, enquanto estivermos vivos, eles sempre poderão se afastar de nós de vez em quando, ou alguém acredita realmente que consegue agradar o tempo todo? Além disso, eles são parte de nossa história e negá-los, não os fará deixar de existir.
Enfim, de que adiantou eliminar os sótãos e os porões de nossas casas, se os grilhões continuam conosco? Ah, e os fantasmas também!
[1] Sempre encontramos um culpado que não seja nós mesmos ou alguém que esteja presente, se possível.
[2] No creo (...) pero, que las hay, las hay.
[3] Qual guerra será grande o bastante? Ou pequena demais?
[4] Positiva ou negativa para quem e a partir de qual perspectiva mesmo?
[5] Da Música “O Pulso” – Titãs.
[6] Somente o caos busca o equilíbrio, o equilíbrio não busca mais nada.
[7] Bem, há, evidentemente, os idiotas por natureza que são realmente incapazes de perceber o que se passa à sua volta, mas não nos enganemos, ou a maioria da humanidade é composta de idiotas, ou a maioria da humanidade adotou este comportamento por conveniência. Sou um otimista e, portanto, quero crer na segunda hipótese, mas ainda posso ser convencido do contrário, tal acontecimento, de qualquer forma, não mudaria o andamento da sociedade contemporânea e apenas inundar-me-ia de tristeza e solidão.
[8] Existem tiranos e ditadores de todos os tamanhos, dos impérios às casas de família.
[9] Tempo novo? Quantos tempos existem? Penso que apenas um.
[10] Sócrates, diz a tradição, trouxe a filosofia para a Terra já que, antes, ela estava com os deuses.
[11] Pode se morrer da morte severina “que é morte que se morre de velhice, antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte e de fome um pouco por dia” ou pode se morrer aos 100 anos entre lençóis de seda, mas é impossível achar quem diga, e prove, que nasceu para não morrer. Eternos na Terra apenas os mitos, as lendas, os reis de antanho e essa indisfarçável saudade que a alma humana sente de Deus.
Cezar Lopes.

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