Menos Um Marginal No Mundo

“O nome é Diogo. Idade? Quinze. Por que caí[1]? 1-5-7[2]. Meu pai? Morreu antes de eu nascê. A mãe conta que ele tava de bobeira e um policial encheu ele de bala. Disseram que ele tinha uma arma. Mas a mãe diz que ele nunca teve arma. Ele tinha 16. A mãe? É mulher da vida”.
Encostado junto ao meio fio, Beto aperta um baseado. Viver estava cada vez mais complicado. A namorada acabara de comunicá-lo, estava grávida. Aí sim, refletia enquanto acendia o cigarro, já era difícil ajudá a mãe... Imagina, agora com um filho! Que estranho! Acho que vô me acostumá com isso. A gente se acostuma com tanta coisa... A gente se acostumou co’a morte do pai e do Chico. Morre um aqui... Nasce um ali... A gente se acostuma. Mas o Chico foi doído. A mãe ainda sente a falta dele. Ela não fala, mas fica a tarde intera na frete da geladera, olhando aquela foto onde a gente era piá, brincando na rua. Também, aquele burro tinha jeito pra se metê em briga. Um dia ia dá nisso. A mãe já devia sabê. Bom, se não sabia, se acostumou. Agora eu vô precisá trampá
[3] de verdade. Ou vê se o patrão[4] me arruma coisa melhor.
Enquanto os pensamentos de Beto fluem diante de seus olhos desfocados um Vectra encosta do outro lado da rua. Do veículo, desceu um senhor de meia idade. Beto sente o cheiro de um perfume forte. O homem tem uns pano
[5] xarope[6], reflete. O motorista olha para o peneu traseiro resmungando impropérios e preparando-se para trocá-lo quando percebe Beto do outro lado da rua, sentado, rindo.
- Ô guri, vem aqui!
Beto vai até ele que sente o cheiro de maconha, mas não faz questão de comentar.
- Fala seu
[7]!
- Quer ganhar dez paus?
- Claro! Mentalmente, Beto visualiza que hoje vai ser fácil levar comida pra casa pois vai poder dizer a verdade para a mãe. “Comprei com o dinheiro que eu ganhei trocando um peneu prum lôco”. Ele pode sentir o orgulho da mãe, seus olhos brilhando. Seus rosto enrugado se abrindo num sorriso terno. E ele vai fingir que nem se importa. Ela sabe que é fingimento. Porque faz diferença para ele saber que a mãe aprova sua conduta.
Enquanto abre o porta-malas o homem pergunta se Beto já trocou algum peneu antes.
- Claro, seu. Eu trabalhava numa borracharia.
- Então pega aí, aponta para o macaco e para a chave de rodas.
Nesse instante, o celular do motorista toca. O homem, faz sinal para que Beto continue o trabalho e sentar-se no banco do condutor para atender à ligação.
Então Beto percebe uma caixa preta presa ao porta-malas por velcro. Ele olha para o homem através do vidro de trás, ele está distraído e não percebe que Beto, abre a caixa e retira dali um revólver calibre 38.
Com a arma em suas mãos, novas e mirabolantes idéias transitam pelo seu imaginário. “Podia sair correndo por trás do beco e nunca mais...”. Beto confere as balas. “Tá carregado até a boca. Eu podia metê uma bala nesse mané... E ainda saía daqui de Vectra... Agora eu consigo o que quisé na vila... Com esse 38 cheio de bala!, agora a conversa é otra... Acho que vô acertá as contas com aquele safado que matô o Chico... Agora eu tenho poder, e vamo vê quem se mete comigo!”. Mais uma olhadela por sobre o capô, o homem está discutindo. “A coisa tá feia. Deve sê a mulher dele”.
Beto poderia ter simplesmente desaparecido. Mas, por outro lado, ainda tinha aquela coisa de contar para sua mãe como conseguira comprar comida, honestamente, naquele dia.
Quando o homem terminou de falar o peneu já estava trocado e as ferramentas guardadas no porta-malas.
Beto recebeu os dez reais e saiu em disparada rumo ao beco. Talvez ele não ficasse com a arma. Depois de acertar as contas com aquele safado que tinha matado seu irmão ele poderia trocar a arma por dinheiro com o patrão. O mês estava garantido e sem que ele precisasse ficar servindo aqueles branquelas que entram na vila de carrão pra comprar
[8]. “Engraçado, quando tem problema eles nunca vão presos. Quem vende pra comer, é bandido, quem compra pra se divertir, é usuário. Isso lá é lei que se invente? Quem escreveu isso nunca passô fome. Depois a mãe fica querendo que volte pra escola. Pra quê? Aprendê a lê coisas como essa lei... Melhor não saber. Mas o meu filho vai pra escola! Quando ele nascer eu vou tá trampando! Ele não vai ficar correndo por aí de mercado em mercado pra garantir bóia no discuido[9]”.
Beto se aproximava do final do beco. Depois bastaria virar à direita e...
- Polícia! Parado vagabundo! Beto reconhecia aquela voz... O homem do Vectra.
Seus pensamentos emaranhavam-se, “Tinha que tê matado ele...”, “Meu filho não vai tê pai!”, “Sô mais rápido”, “A mãe vai ficar triste”.
Entrementes, Beto levou a mão à cintura. Tentava sacar ou largar a arma?
Beto foi atingido três vezes no peito e caiu mortalmente ferido. O homem do Vectra era delegado de polícia.
Dentro da vila, do lado de cá do abismo que separa duas sociedades distintas, nasceu o Diogo, sem pai.
Do lado de cá do abismo, chora em silêncio uma viúva, mãe de dois filhos mortos pela miséria humana.
Do lado de lá, os homens de bem abrem seus jornais nas páginas policiais e regozijam-se. Durante o cafezinho, nos escritórios, alguns dirão: “Viram? Os vagabundos já estão assaltando até policial!”. E outros responderão: “Olhe pelo lado positivo, o dia amanheceu com menos um marginal no mundo”.
[1] Ser preso julgado e sentenciado.
[2] Art. 157 CP, roubo.
[3] Trabalhar.
[4] Traficante dono do ponto.
[5] Roupas.
[6] Expressão ambígua. Pode significar bom ou ruim.
[7] Senhor.
[8] Comprar drogas.
[9] Art. 155 CP, furto.
Cezar Lopes.

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