O Arroio das Tripas

No Beco do Arroio das Tripas (a origem desse nome é uma daquelas histórias que, quem diz não sabe e quem sabe não diz), como em qualquer outro beco miserável de uma grande cidade, as crianças não sabem ler ou escrever e sequer sabem como é uma escola.

Sua imaginação, portanto, é alimentada pelas conversas dos pais e dos vizinhos que, invariavelmente, elegem um anti-herói como ícone de suas desditas. Esse é um costume transmitido de geração para geração.

Um nome recente que ocupa o imaginário das crianças do beco é o Preto Fio. Com armas de fogo ou armas brancas esse rapaz de 16 anos tem atormentado os moradores do beco e desafiado a polícia de forma tão acintosa que, para alguns, ele tem o corpo fechado, para outros tem parte com o demônio e para as crianças tem um poder fantástico, pois é capaz de desviar balas com o olhar e as facadas desferidas contra ele só atingem a sua sombra.

A vida seguia, assim, seu ritmo no beco. Até aquele dia em que, no último barraco da rua, que terminava para dar passagem ao arroio que dava nome ao beco, surgiu um velho, alto magro, longas barbas brancas e um olhar de um azul penetrante, que deixava a quem fosse observado a sensação de ser transparente.

Naquele dia todo o beco amanheceu comentando a novidade. Algumas senhoras gordas chegavam a lavar várias vezes as mesmas roupas rotas no riacho apenas para aproveitar e dar uma espiada para o velho barraco na esperança de descobrir seu novo proprietário.

Nadir, a doceira foi quem viu, pela primeira vez o seu habitante.

- É um vovô. Pelo visto mora sozinho. Nossa Senhora, vizinha, quando ele me olhou, cruzes! Parecia que estava olhando pra dentro de mim ou... não sei... ele é muito estranho.

Aquele comentário foi o bastante para avivar a mente das crianças do beco. Não raro era que as mães tivessem de sair em busca de seus filhos e os encontrasse rondando aquele barraco. Mas, com o tempo, a novidade foi substituída por novos boatos sobre as diabruras do Preto Fio.

Para lavar as roupas no arroio havia uma ordem. Chegar até ele era coisa fácil já que, com o tempo, formou-se um carreiro da rua de chão batido até a pedra que servia de tábua para que as mulheres surrassem suas desditas nas roupas que lavavam. A ordem era simples: quem chegar primeiro, usa a pedra primeiro. E assim por diante. Claro, toda a regra tem sua exceção. Nesse caso, tratava-se da Veia Preta, a mãe do Preto Fio e logicamente, o próprio Preto Fio era a exceção por excelência, uma vez que, quando decidia passar o dia no arroio se refrescando, ninguém sentia a menor vontade de lavar nada.

Para um olhar desatento todos os guris dali são iguais. Todos pardos ou negros. Se algum branco havia perdia-se na multidão de pernas finas, pés descalços e barrigas cheias de lombrigas que habitavam o beco. Talvez por isso, a figura daquele velho tenha servido de motivo para tamanho falatório.

Entretanto, ao observar com mais atenção, se podia perceber ali, figuras distintas, indivíduos, sedentos por uma oportunidade, ainda que não tivessem consciência plena disso, para alçar vôos rumo a outra sorte.

Zoel era um desses meninos pardos e piolhentos que vive de cabeça raspada e que sonha em um dia ser como o seu herói: o Preto Fio. Do alto dos seus dez anos de idade, circula pelo beco catando minhocas para amedrontar suas irmãs. De vez em quando até põe ela na boca e deixa que escapem apenas quando está diante delas pois descobriu que assim pode assustar até sua mãe. A dona Izolde. Só não teve graça quando um minhoca resolveu lhe sair pelo nariz. Não pela minhoca, mas pelas palmadas que seu pequeno traseiro raquítico teve de suportar. Demais, segue seus dias atrás de um segredo. Sua missão é descobrir o que faz aquele velho dentro do seu barraco.

Sábado de manhã, a mãe de Zoel passa com sua trouxa de roupas rumo ao fim da rua, pretende lavar tudo aquilo antes que a Veia Preta ou seu temido filho apareçam. Zoel vai com ela mas, ao chegar próximo do barranco, junto à goiabeira que marca o início da trilha que leva até o arroio, o sol lhe revela uma novidade. Ali, onde sempre encontrou pneus velhos, garrafas vazias com rótulos desbotados, e toda a sorte de lixo que nunca foi coletado do beco, Zoel percebeu algo diferente. Negro como a noite de seus pesadelos, mas que brilhava como as estrelas de seus sonhos, aquelas que ficava a observar no verão, deitado no telhado do barraco. Ele correu até ali, enquanto sua mãe procurava equilibrar-se com a trouxa de roupas na descida do barranco, e teve certeza: era uma arma!

Morreu ali, sua inocência e com ela qualquer esperança de futuro.

Zoel morreu uma semana depois, num assalto sem méritos nem deméritos. E a sociedade, mais uma vez, dorme feliz.

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