Réu e rei

Ok, vocês sabem que, quando não escrevo para crianças sou sarcástico com relação a coisas como, por exemplo: verdade honra, certeza, tamanho do universo, finitude humana, etc.
No Entanto, em se tratando de realidade, poucas vezes na vida um fato me pareceu tão similar à ficção, como os acontecimentos que passo a narrar agora.
Reparem, contudo, que os fatos são reais do princípio ao fim, exceto pelas necessárias intervenções deste escritor, já que a riqueza dos detalhes é tamanha que, tenho certeza, mesmo tendo o cuidado de ocultar a verdadeira identidade das personagens envolvidas, dificilmente isso passaria desapercebido por muito tempo, uma vez que fato tão singular não se repete, espero, com relativa freqüência.
Foi na última sessão do tribunal do júri em Buriti da Rosca que aconteceram essas cenas épicas (épicas?).
Logo após a entrada do réu, o juiz aproveitou-se da prerrogativa de seu posto e inverteu o protocolo para homenagear aos membros constituintes daquela sessão, já que naquele dia se despedia da vara criminal.
Naturalmente, nessas circunstâncias, o doutor estava emocionado. Mas, mesmo com a voz embargada, agradeceu ao povo do cartório, à sua secretária, ao pessoal da limpeza, aos jurados, à Brigada Militar, à defensora pública e ao promotor de justiça, por seus méritos, explicando o porquê de cada homenagem.
Do cartório explicou sobre sua importância na organização de um evento como o tribunal do júri. E começou a fungar. E o réu ali, boquiaberto.
Da secretária esclareceu que há muito tempo o acompanhava sempre realizando suas tarefas com total desenvoltura e muito zelo. Nisso a secretária foi buscar uma toalhinha de papel. Foi o sinal tácito para que as lágrimas lhe rolassem. E o réu de olhos arregalados.
Do pessoal da limpeza agradeceu pela organização da limpeza, sempre se aproveitando dos horários vagos para manter tudo limpo no tribunal. E lá se foi uma toalhinha de papel. E o réu olhando pro céu. Boca fechada, olhos começando a revirar.
Dos jurados agradeceu pelo desprendimento de se apresentarem ali a cada sessão sem ganhar nada para ajudar a sociedade a promover a justiça. Outra toalhinha de papel. Nessa altura a secretária já tinha buscado o rolinho inteiro e o réu fitava os jurados, ainda não sorteados e, portanto, sentados junto com o povo, como que pensa: ah são vocês é?
Da Brigada agradeceu a presteza em atender quando são necessárias diligências. Nessa altura eu começo a acreditar que juiz vive mesmo em outro planeta. Ora, quando um juiz ou um promotor solicita escolta, viatura, essas coisas, ele não está pedindo. Ainda que seja educado e de fino trato, seu pedido é uma ordem. Mas, de outro plano da existência talvez não pareça assim. Ah, e o réu lá, com um olho para cada lado tentando entender o que o juiz quis dizer com “presteza” dirigindo-se aos brigadianos.
Da defensora pública elogiou a boa vontade em atender, mesmo de última hora, casos em que o representante legal do réu se escafedeu. Aí as lágrimas rolaram pra valer, afinal agora eram dois chorando, o juiz e a defensora. Acho que até o réu se molhou. Pela cara ele pensava: putz, se esses dois se dão tão bem assim que será de mim? Afinal, povo é povo e não tem competência mental suficiente para abstrair, do profissionalismo, o afeto humano. De fato, mesmo eu que já não sou bruto ainda tenho dificuldade em entender determinados casos dessa natureza. Mas, como já disse, isso é coisa de outro plano.
Do promotor o juiz, que já não tinha mais lágrimas, elogiou o empenho em cumprir de forma excelente o seu trabalho. E eu pensando nas palavras que ouvi desse mesmo promotor diversas vezes: eu só cumpro com a minha obrigação! Claro, o réu a essas alturas já estava inquieto devido à tamanha demonstração de respeito do cara que proferiria sua sentença para com o sujeito que faria de tudo para condená-lo. O suor frio começou a brotar-lhe do rosto.
As horas passaram-se lentas e eu, mero espectador, talvez só não mais ansioso do que o réu esperava pelo julgamento propriamente dito. Mas, pensam que paramos por aí com as homenagens? Nada. Pois, neste dia especialíssimo um jurado, quebrando o silêncio natural do júri, pediu a palavra para render homenagens.
Para que os senhores leitores não se sintam tão enjoados quanto eu, poupar-lhes-ei os preâmbulos e direi apenas que: depois de repetir todas a homenagens do juiz, só que sem choradeira, para coroar aquela manhã inteira de homenagens: assim arrematou o jurado que falava pelos seus pares:
- E finalmente, gostaria de homenagear também ao réu (hein?) sem o qual nada disso (o tribunal do júri) estaria acontecendo! E o réu... Simplesmente abriu e fechou a boca num gesto silencioso que poderia até ter sido involuntário, mas que expressava, para todos os que não participavam rotineiramente daquele circo, um estado de choque. Como se a realidade como ele até então conhecera tivesse sucumbido diante dos seus pés, de vez.
E, neste dia, um réu virou rei, homenageado por ser a pedra fundamental de todo o julgamento, afinal, sem ele, realmente aquele espetáculo não aconteceria. Mas era mesmo para ser assim?
Quanto a mim, juro que, enquanto saía do teatro, digo, do tribunal, pude ouvir o jurado pedindo a palavra e agradecendo as honrarias de que fora digno. Algo mais ou menos assim: obrigado. Agente fica muito feliz de estar aqui hoje. Fizemos de tudo para alcançar este lugar, bem que a gente tentou se esforçar mais, mas as bala acabaro. Mas no fim deu tudo certo, tamos aqui e agora seja o que Deus quiser. Mas o importante é que pudemos trazer a satisfação de toda essa equipe.
Aliás, no final, soube que o réu foi declarado louco. Louco?
Bem, talvez tudo o que presenciei fizesse parte da sua loucura, ou da minha.
Fim de jogo, digo, de julgamento.
Cezar Lopes.

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