Ela volta logo

Ela saiu cedinho para comprar pão. Há muito tempo não fazia isso. Ele sentiu-se privilegiado. Feliz com aquele gesto de afeto tão nobre. Lembrou-se do dia em que a conhecera. Uma tarde comum, um arrebol singelo emoldurava a biblioteca quando esbarraram um no outro. Ele estava atrás de trabalho. Ouvira falar de uma vaga ali por perto e fora conferir. Do nada ela surgiu saída da biblioteca, carregada de livros. Ela não o viu. Ele, naqueles dias, via apenas as contas por vencer. Angustiado, tentava adivinhar o endereço que, de fato, não tinha, onde haveria a tal vaga para... Para o quê? Mesmo? Nem lembrava! Naquelas alturas não fazia a menor diferença. Qualquer serviço serviria, afinal, ele era formado e reformado em Tudologia! E era um tudologista de mão cheia. Ela, uma professorinha, delicada, sonhadora e carregada de material de pesquisa para suas aulas prestando atenção estrita nos estreitos degraus que descia cuidadosamente sentiu que caía e seu material se espalhava pela calçada. Só percebeu que sua queda fora suavizada pelo corpo dele quando o ouviu gemer sob ela. Assustada, deu um pulo. Meu Deus! Matei o rapaz! Pensou. Mas ele estava bem. Inicialmente se ofenderam. Depois, se encantaram. Trocaram telefones, se encontraram, se enamoraram, casaram e seus dias nunca mais foram os mesmos! Foi cada perrengue de dar gosto! Agora, deitado à espera do delicioso desjejum que ela prepararia com o pão quentinho, sorria ao lembrar. Teve uma vez em que ela teve colite. Como sofreu! Diarreia, dor, febre... E aquele barrigão! Mas ele ficou ao lado dela até o fim. Foram longos meses e diversos tipos de exames e medicamentos! Até que um dia, do nada, passou. Nem os médicos explicavam. Depois foi a demissão da escola. Ela chegou chorando. Tivera uma discussão com a coordenadora pedagógica e fora demitida. Sofria antecipadamente pela falta dos seus alunos. Ah! Sentimento de posse! Possessivo, possessão de quem se entende possuidor! Posse, como é difícil escapar de ti. Custou mas fê-la crer que seus alunos ficariam bem afinal de contas: ninguém é de ninguém, exceto eu de você, meu amor. Ela o amou naquela noite mais do que nunca! Amou-o com aquela paixão desesperada que afligem a quem sente, pressente ou vivencia a iminência de uma perda irreparável. Olhou por acaso no relógio da parede, nove horas! O padeiro queimou o churrasco! Se ainda não estava pronta nem a primeira fornada, imagina a fila! Ah, mas ela estava se esmerando! Era muito afetuosa. Por muito tempo não demonstrou tamanho afeto, mas ele sempre perseverou na espera. Sabia que um dia ela lhe retribuiria tanto amor! Não que nunca o tivesse feito. Quando ele esteve às portas da morte em função da dengue hemorrágica da qual escapou por pouco e muito em função dela que o vigiou diuturnamente, velando-lhe a saúde e o sono, fazendo valer ao extremo o dito religioso, “na saúde e na doença”. A vida é uma gangorra. Em seguida foi a vez dela novamente. Dessa vez, uma gravidez que não chegou ao seu bem esperado termo. Pelo contrário... Muito pelo contrário... Após seis meses de uma gestação tumultuada e cheia de cuidados e corridas ao hospital, o bebê não resistiu. Nasceu prematuro. Durou uma noite e se foi. Mas viveu. Então, foi registrado, teve um nome, seu nome, e logo em seguida devolveram-no à terra com lágrimas, lamentos e uma dor que muito tempo depois, tinha certeza, ainda causaria momentos de angústia nas noites insones de sua amada. Outra olhadela para o relógio... Talvez devesse ir atrás dela... Mas como? Se não podia sair da cama há anos com a paralisia que, após uma febre altíssima o acometeu e prometia não deixá-lo andar, talvez, para sempre. Fazia terapia, mas estava numa faze muito incipiente, não tinha ainda os resultados prometidos pelos médicos e fisioterapeutas! O jeito seria esperar. Ela deve ter aproveitado para fazer outras coisas na rua. Eu também fazia isso quando ainda podia andar. Deixava para fazer tudo numa única saída. Além de mais prático era mais barato. Ela voltaria logo. Ela entendia o martírio da espera. Quando teve pneumonia e ficou internada por uma semana, justamente no período em que ele mais teve serviço e, consequentemente, pouco tempo para ir vê-la. Como era angustiante trabalhar contanto os minutos para chegar-se a ela. E como era triste ver aqueles lindos olhos verdes emoldurados por círculos arroxeados que desmentiam sua beleza natural. Sim, ela que tanto reclamava sua ausência durante aqueles dias, pois ele só podia entrar mesmo depois das seis por poucos minutos, agradecendo o favor das enfermeiras que já conhecia pelo nome, ela sabia o quanto era terrível a espera, sem ter o que fazer a não ser contar os segundo etéreos e lentos que se arrastavam com vagar pelo éter morno, quente ou frio, dependendo da estação, já que hospitais públicos dificilmente têm ambientes adequadamente climatizados. Até nisso se repara quando o tempo não passa. Riu. E rindo, adormeceu. Quando acordou o relógio marcava dezoito horas. Ele estava com fome, a casa às escuras - mesmo no verão, nas montanhas escurecia cedo. Tinha fome, mas, acima de tudo, estava com saudades dela, do seu sorriso acalentador, ainda que triste. Subitamente, uma brisa crepuscular, acariciou seu rosto! Reanimado, voltou-se para a janela! Coração disparado! Ahá! A janela! Ela deixara a janela aberta! Ela jamais deixaria a janela aberta se fosse demorar. Não teve mais dúvidas, logo, logo Madalena estaria de volta!
Cezar Lopes.

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