Sem Exceção
Olá! Permitam-me que me apresente. Eu sou o Mestre Henrique[i], o contador de histórias. Na verdade, eu conto estórias, mas como ela se fundamenta em histórias, no fim uma é descendente da outra. Agora, a história.
João nasceu na favela. Aos dez
anos perdeu o pai, vítima de uma bala perdida. Sua mãe, Dona Alzira, ficou com
uma pequena pensão e, com seu trabalho como lavadeira, sustentou a casa e
educou João da melhor forma que pôde.
Por sugestão de seus professores,
segundo os quais, o menino era extremamente inteligente e merecia uma educação
melhor, sua mãe matriculou-o na melhor escola que pôde pagar. Passavam por
necessidades, é verdade. Mas, ao menos, pensava sua mãe, João teria um futuro.
O menino compreendia o sacrifício
de sua mãe e dedicava-se aos estudos. Sonhava em ser advogado e defender
aqueles à sua volta, que não tinham voz.
- Mãe, a senhora ainda vai ter
muito orgulho de mim, dizia todas as noites quando a mãe o colocava para
dormir.
- Mas eu já tenho muito orgulho
de ti João. Você é meu tudo, minha estrela guia. Nunca se esqueça disso ouviu,
respondia dona Alzira com carinho, afagando o rostinho do filho?
- Sua bênção, mãe.
- Deus te abençoe meu filho.
Já no ensino médio João conseguiu
trabalho como estagiário em uma gráfica. Foi lá que conheceu Emanuel, um
cliente frequente que buscava material gráfico para a empresa do pai.
Emanuel nasceu em um bairro de
classe média. Não era muito esforçado, mas as condições financeiras da família
lhe favoreciam.
A vida de Emanuel era bastante tranquila.
Trabalhava na empresa do pai de tarde à noite cursava Engenharia. Um curso que
pedia demais de Emanuel, mas ele logo descobriu uma forma de melhorar suas
notas. Nas conversas com João descobrira que o rapaz era muito bom em
matemática, então, começou a pagar-lhe para realizar seus trabalhos, assim sobrava
mais tempo para o mais importante, segundo ele, se divertir, certo de que suas
notas estariam em boas mãos.
Emanuel era também muito
generoso. Portanto, sempre que sobravam convites levava João consigo, afinal,
como dizia aos amigos mais chegados, quando o questionavam sobre aquele “infiltrado”,
o rapaz fazia por merecer.
Foi numa dessas reuniões que João
conheceu Ana, irmã de Emanuel. Os amigos de Emanuel ficaram preocupados que
isso pudesse causar problemas no grupo, mas Emanuel tranquilizou-os: Só se ele
aparecer de saia!
Ana era bonita. Cabelos negros
curtos, pela alva e um modo tal de se movimentar que conferia uma leveza
angelical à sua beleza.
Em casa, contudo, Ana não tinha
paz. Seu pai não aceitava as escolhas da filha e já tinha pensado, inclusive,
em interná-la para tratamento psiquiátrico.
- Imagina, resmungava Dr. Eduardo
pelos cantos da casa, essa menina nem saiu das fraldas e me vem com essas
ideias. Ah, mas eu dou um jeito nisso. Ah se dou! Aqui não! Na minha casa essa
coisa não se cria! Bradava ele, claro, sempre que estava sozinho. Ana era
lésbica e não fazia questão nenhuma de esconder isso, para a vergonha do seu
pai e o desconforto de sua mãe.
João idolatrava Emanuel. Sempre asseado,
cheirando a perfume. Um perfume doce. Exalando personalidade e segurança.
Quanto a Ana, tornaram-se grandes amigos, ainda que não fosse facultado a João
conviver com a família de Emanuel. Afinal, como dizia o pai de Emanuel: Uma
coisa é ser gentil com os menos favorecidos, outra bem diferente é tomá-los por
iguais.
Dr. Eduardo acreditava que estava
no controle da sua família. Afinal, apesar das esquisitices da filha, Emanuel
era a prova de que tinha feito um excelente trabalho na criação dos filhos.
Nunca ocorreu ao Dr. Eduardo de
onde vinha todo aquele excedente financeiro que Emanuel esbanjava nas festas.
Emanuel, claro, contava com isso. Viciado em cocaína desde muito jovem, ele jamais
poderia sustentar o vício e manter seu padrão de vida sem outra fonte de renda,
mas isto já estava, desde há muito, arranjado. Emanuel traficava na faculdade,
o que era muito fácil, por sinal. Lá não havia fiscalização e a clientela era
farta.
Mas Emanuel não contava com o
discernimento de sua irmã. Ana conhecia os negócios do irmão, porém, procurava
não se envolver.
Minha mãe sempre disse que o mal
feito é descoberto e, no caso de Emanuel, esse dia chegou quando o Dr. Eduardo
resolveu confrontar Ana e proibir de receber suas amigas em casa...
- Minha namorada o senhor quer
dizer!
- Namo... Mas... Você tem
coragem! Sua... Lave essa boca sua fedelha... Namorada, mas era só que
faltava...
Eduardo estava exasperado... Ana
olhava-o com um misto de raiva e tristeza nos olhos...
- Namorada sim, por quê? Afinal,
em século você vive pai? As pessoas não precisam esconder sua sexualidade
simplesmente por que você não concorda com elas... Respeito! Sabe o que é isso
pai? Res-pei-to!
Eduardo descontrolou-se. Antes de
se dar por conta desferiu uma bofetada em Ana.
Vencido, apelou para um último
argumento.
- Você é uma vergonha para essa
família! Disse. Deveria seguir o exemplo de seu irmão!
Ana não se conteve!
- Exemplo? O exemplo do Emanuel?
Aquele traficante barato que sustenta o vício viciando os colegas de faculdade?
Eduardo sentou. Faltaram-lhes as
forças. Não era possível! Será que a mesquinharia de sua filha chegara a tanto!
Levantou-se colérico, empurrando Ana para a porta!
- Vá embora daqui sua invejosa,
sua inútil, mau caráter, sua... Puta! E fechou a porta deixando a filha do lado
de fora.
Nenhuma ofensa pode doer mais do
que a dúvida sobre o caráter de alguém. Questões como essas foram tema de
discussões filosóficas, psicológicas, sociológicas e, inclusive, judiciais, ao
longo de toda a nossa história e, se há algo de pacífico com relação ao assunto
é o fato que se trata de uma questão tão subjetiva que só pode ser medido pela pessoa
ofendida e por mais ninguém.
Ana estava muito abalada.
Vingança? Não precisava vingar-se. Agora, reestabelecer a verdade, ah isso lhe faria
muito bem. Sabia das atividades do irmão. Sabia que tinha razão e iria provar
isso. Iria desmascará-lo em seu próprio território.
Naquela noite haveria uma festa
na Território Livre, a boate ao lado da faculdade de engenharia e Ana sabia que
Emanuel estaria vendendo sua mercadoria por lá. Pela última vez, pensou.
Ana estava próxima à boate.
Estava em dúvida se devia avisar ao irmão. Mas agora, pensava, já está feito.
Entrementes, chega João que,
reconhecendo Ana, aproximou-se.
- E aí menina? Não vai entrar.
Ela perdeu a cor.
- Não. Disse seca. E acrescentou,
e você também não deve.
- Ué? Por que não? O Emanuel já
está lá dentro, sabia? Foi ele quem me convidou. Vamos lá?
- Não. Repetiu ela segurando-o
pelo braço. A polícia já vai chegar!
- Polícia? Mas o que é isso Ana?
Pirou? Que negócio é esse de polícia? Polícia para quê?
Ela riu sarcástica.
- Ah, claro, você não sabe...
- O que é que eu não sei?
- Que o seu amigo é traficante
aqui na faculdade, ué! Mas isso acaba hoje, concluiu a moça começando a chorar.
Isso acaba hoje!
- Ana, você enlouqueceu? Que
história é essa? O Emanuel...
- É sim... Não sabia? Não sabia
mesmo João?
O rapaz estava atônito! Claro que
não sabia, mas conhecia muito bem a polícia. Precisava avisar ao amigo. Nunca
seria a favor do que o amigo fazia. Se é que era verdade. Mas entregá-lo à
polícia em uma boate com certeza não seria a melhor maneira de resolver isso.
João entrou sem pensar. Olhou
rapidamente em volta e encontrou Emanuel numa mesa e foi até ele.
- João... Senta aí...
- Cara, eu não sei se é verdade o
que me disseram que você vende, mas cai fora que a polícia está chegando...
João não teve tempo de
concluir... A polícia entrou sem dar tempo para explicações.
- Parado vagabundo! Gritou um
soldado, apontando par a mesa onde estavam Emanuel e João.
Emanuel levantou-se e correu em
direção à porta dos fundos. João tentou segui-lo, mas não foi longe. Assim que se
levantou começaram os disparos.
Alvejado nas costas João morreu na hora.
Ana, que passara pelos soldados,
desesperada, correu em direção ao corpo de João, mas antes que chegasse a ele,
uma bala na nuca fê-la cair para sempre, sem vida.
Assim que a correria se dispersou
os pais dos alunos que estavam na boate puderam entrar.
A polícia relatava que não havia
baixa entre os soldados, entre os civis, apenas um vagabundo e uma jovem que se
pôs na linha de tiro e foi abatida acidentalmente. Não se sabia, ainda, por
quem, já que a polícia havia enfrentado resistência.
Na porta da boate, lágrimas
escorriam do rosto do Dr. Eduardo que, silenciosamente, amaldiçoava aquele “negro
maldito que havia envolvido seus amados filhos naquilo tudo”.
Dona Alzira, desesperada à
procura do filho, perguntou a um soldado:
- Senhor, sou a mãe do João, onde
ele está? Perguntou. Grossas lágrimas rolavam-lhe pelos sulcos da face.
O oficial olhou a velha negra de
alto a baixo medindo sua “estatura social” e finalmente disse:
- Está ali, disse apontando o
corpo. E completou, sinto senhora, mas o combate ao tráfico não permite
exceções.
No dia seguinte, em sua sala,
enquanto tomava um cafezinho, Alexandre adicionou um novo post em seu Facebook com
a foto que era manchete daquela manhã das páginas policiais. E acrescentou o
seguinte comentário: - Enfim, mais uma noite movimentada onde, apesar da
infeliz perda de uma inocente, mais um vagabundo foi abatido. Como dizia meu
pai “menos um marginal no mundo”.
Emanuel, a conselho de seus pais,
foi morar e estudar em Nova York.
Sozinha em seu barraco, enrolada
em seu xale puído, olho vidrados fitando o chão, dona Alzira chora em silencio,
a perda de seu filho amado, sua estrela guia...
- Sua bênção minha mãe...
- Deus te abençoe meu filho, Deus
te abençoe...
Agora e para sempre, amém.
Cezar Lopes.
muito bom!
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