O bom ladrão

Caía a tarde na penitenciária estadual e os detentos se reuniam para aproveita os últimos minutos de pátio.
Um grupo achegou-se a um detento que, sentado, em silêncio, contemplava o chão com olhar distante.

- Ô Libório, conta pra nós como tu veio parar aqui.

- De novo? Resmungou lentamente, o apenado.

- É que o Maçaneta aqui é novo e não quer acreditar.

- Bueno, foi assim.

As coisas começaram a ficar difíceis pra mim quando deram de colocar câmeras em tudo que é lojinha de esquina. Eu gastava semanas estudando o ambiente e quando chegava na boca do caixa antes de gritar “é um assalto!” lá estava, de cantinho, aquela coisinha minúscula com seu olho fixo em mim.

- E qual o problema?

- Qual o problema? Quem tem que aparecer na televisão é artista de novela!

Pois, daí que tive de mudar de clientela e comecei a pegar o freguês na saída de casa, de madrugada. Tá certo que tem o inconveniente de ter de acordar cedo, além de pagar pouco, mas é bem melhor que ter de enfrentar aquelas camerazinhas bisbilhoteiras.

O negócio até que ia bem. Eu já tinha quase limpado um bairro inteiro quando numa madrugada fria de inverno, me aproximei, como de costume, mas, na hora do bote, quando já tinha anunciado o assalto, começou uma gritaria dentro da casa. Era um tal de “ai vovó, acudam, ai vovó”. Crianças chorando. Coisa de comover qualquer cristão.

Quando me dei conta, estava com o cidadão dentro da casa, olhando o corpo da velha estendido no chão da sala ao lado da cadeira de balanço. E todo o povo em volta gritando por socorro, mas ninguém fazia nada! Então me lembrei dos filmes onde a pessoa caída recebia respiração boca-a-boca e a tal da massagem cardíaca. Nunca fui assustado e nem pensei. Montei na velha. E comecei a massagear o seu coração moribundo.

- E a respiração boca-a-boca?

- Bah, eu tenho sangue frio, mas não tanta coragem assim. Eu até me lembrei dessa parte, mas não deu pra encarar.

Alguns minutos depois chegou a equipe do SAMU e lá estava eu, vá aperto na velha. Os paramedicos assumiram e só então notaram que eu estava ali, com meu 38 ao lado da candidata a finada.

Foi aí que um paramedico fortão perguntou pro dono da casa:

- Quem é esse aí?

- É, o meu ladrão, disse o pamonha, ele... ele roubou a minha mãezinha da morte.

- Ah. Entendo, mas vai preso da mesma forma.

E foi assim que terminei aqui.

- Do julgamento, conta do julgamento!

- Ah, esse foi único!

O promotor fez seu discurso mais ou menos assim:

- É preciso não esquecer, que este não é um ladrão qualquer. Ladrões comuns furtam dos homens, seus bens. Este, contudo, teve a petulância, de furtar da morte o seu mister. Peço, pois, a pena máxima, a este filho de Lucifer.

- Mas isso é muita loucura! Exclamou o recém chegado Maçaneta. Você agiu como o bom ladrão, por que veio parar na prisão? O bom ladrão não foi perdoado?

- Foi, mas a exemplo de mim, ele também foi condenado e, antes de receber o perdão, teve de cumprir sua sentença, até o fim.

Na hora da janta, o Maçaneta ainda tentava entender os desdobramentos da história. Sentado ao lado do Libório saiu-se com essa:

- Tua sorte é que não tem pena de morte por aqui.

- Ué, por quê? Quiseram saber os outros?

- Ela, a morte, deve estar fula da vida contigo. Era capaz até de querer te matar duas vezes!

- Ah, isso não, concluiu libório, a morte é uma cobradora muito séria. Não dá recibo, mas só cobra uma vez.

E enquanto terminavam seu jantar, o silêncio daquele último pensamento reinou no recinto.
Falecido escritor - Cezar Lopes.

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